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De São Nicolau até São Francisco
Por HENRIQUE MANO
Os cabelos brancos que lhe cobrem a cabeça não são sinónimo de velhice, mas sim de uma vida vivida com intensidade, onde a sabedoria tem sido regra. Nem mesmo uma trombose, que o atacou de surpresa há dois anos, lhe extorquiu a criatividade. No seu mais recente trabalho em CD, "Basiado no Amôr," Amândio Cabral "canta suas novas composições," versa a capa do álbum, acrescentando ainda: "Música de Cabo Verde."
A ser lançado brevemente, "Basiado no Amôr" é uma lufada de ar fresco no panorama da música de Cabo Verde. Nele, Cabral desenvolve um trabalho importante de fusão rítmica, casando as tradicionais mornas ao estilo mais clássico do jazz. Com a ajuda do pianista Larry Dunlap (com quem tem já sete CD's editados), o consagrado nome cabo-verdiano da música entrou em estúdio em São Francisco e gravou dez composições: "Unidade", "Ribeira Brava," "Belinha," "Sonho Azul," "Basiodo no Amôr," "Dança Querida," "Nha Destino," "Poema do Abraço," "Segredo di Céu" e "Ilhas, Canção Patriótica."
Muito admirado nos círculos de jazz em São Francisco, cidade onde vive há já três décadas ("quase metade da minha vida," sublinha o músico de 65 anos de idade), Amândio Cabral é considerado uma espécie de Irving Berlin de Cabo Verde. Talento que, à semelhança de muitos outros compatriotas seus, transporta no código genético.
Nasceu em 1935 na ilha de São Nicolau, onde viveu até aos três anos de idade. Nessa altura, a mãe transferiu-o para São Vicente, onde viveu até aos sete - altura em que regressa à ilha natal para começar os estudos. Diz só descobrir a música - como amor e profissão - aos 18 anos. "Até então tinha que estudar, era assim que a minha mãe queria," disse Amândio Cabral em entrevista ao LUSO-AMERICANO. "Em Cabo Verde, os filhos, até à idade dos 17, 20 anos, tinham que respeitar os pais e fazer aquilo que eles mandassem."
A música estava-lhe no sangue. O pai, António Cabral, tocava violino e piano e quatro dos tios do lado materno "dominavam quase todos os instrumentos." Por isso, quando a mãe o leva para onze meses de estadia em Dakar, Amândio Cabral pegou num violino e começou a compor.
Como viu sempre mais além do que o curto horizonte das dez ilhas do arquipélago, em 1960 instala-se em Lisboa, Portugal, onde consegue desenvolver carreira numa altura em que os músicos africanos ainda eram novidade no país. Em digressões financiadas pelo governo português, leva o seu talento, numa primeira fase, a Angola, Moçambique e Guiné-Bissau ("onde na altura já existiam comunidades caboverdianas"), e posteriormente a diferentes nações da Europa, da Itália à Alemanha.
Em finais de 1964, troca Lisboa por New Bedford, em Massachusetts, dando assim início à sua saga de emigração. Seis meses depois aterrava em São Francisco, para não mais largar a cidade à beira da baía. Trabalhou sempre como músico e em 1972 o programa semanal que gravava para a televisão, "Amandio's Musical International," projectou-o junto dos vários grupos étnicos da região.
"Agora estou a compor mais jazz do que outra coisa," reconhece Cabral, "não há nem havia músicos cabo-verdianos aqui."
Amândio Cabral chegou a fazer uso da voz, muito embora o problema de saúde que sofreu há cerca de dois anos o impeça agora de o fazer - "mas penso que vou poder voltar a cantar outra vez."
Entretanto, outros artistas vão emprestando voz às composições que Amândio Cabral cria. Cesária Evora, por exemplo, incluiu "Sodade" no seu álbum "Miss Perfumado," que esteve nos top's musicais de vários países da Europa. "Sodade" é, aliás, a canção referência da boa música cabo-verdiana, gravada já por "quase todos" os grandes músicos das ilhas.
Cabral conta como foi que, num dia de 1958, "Sodade" ganhou vida: "Escrevia-a sempre para ser uma coisa simples ... Cerca de duzentas pessoas de São Nicolau foram para São Vicente, a caminho de São Tomé e Príncipe. No dia do embarque, quatro ou cinco músicos acompanharam esse grupo ao cais donde o barco largaria e aí começamos a improvisar algo baseado na palavra saudade. Um rapaz que se chamava Luís Morais improvisou a música no clarinete e quando cheguei a casa acrescentei mais umas coisinhas, e a canção nasceu. Mas nunca foi uma coisa que eu realmente tivesse feito a pensar em fazer sucesso. Fi-la e esqueci-me dela."
Em 1958, Amândio Cabral gravou-a pela primeira vez, iniciando uma tradição que nasceu para ficar, certamente ainda herdada pelas gerações vindouras. Nos Estados Unidos, em contacto com o jazz e outras correntes, Cabral acabou por expor as mornas a diferentes culturas. "Quando cheguei a São Francisco, fui estudar música para a universidade. Nós em Cabo Verde tocamos as mornas na sua forma tradicional. Eu não sei se os meus colegas de lá compreendem, mas eu modifiquei isso um pouco, e, embora cante a morna como ela é, o acompanhamento musical é mais sofisticado."
Na sua perspectiva, Cesária Evora veio "abrir a porta para a música cabo-verdiana, agora tudo depende daqueles que vierem a seguir." Muito embora tenha ido pela última vez a Cabo Verde em 1996 ("estive lá uma semana mas só fui a São Vicente"), continua a beber na mesma fonte de inspiração. Acha que a saudade, hoje, diluída pelo tempo e pela distância, já não o levaria, por exemplo, a meter-se num a-vião e ir a Cabo Verde; mas continua a reconhecer que a música está na alma do seu povo.
"E verdade, quase todo o caboverdiano tem esperança de um dia tocar um instrumento. Não quer dizer que todos vão tocar bem, mas nós gostamos de ter um good time."
Reconhece que a ausência de músicos caboverdianos em São Francisco o obrigou a absorver outras tendências. "Ās vezes faço uma gravação onde tenho que usar músicos de jazz porque não tenho músicos nem portugueses nem de Cabo Verde, e o resultado não tem aquele sabor caboverdiano - mas o sentimento está lá, só lhe falta o forte toque caboverdiano que nós tanto adoramos."
A homenagem que o governo de Cabo Verde e três associações comunitárias com sede na Califórnia lhe prestaram no passado dia 29 de Julho, em Sacramento, CA, é a prova inequívoca de que Amândio Cabral - com ou sem acomodações artísticas - continua a viver no coração dos seus.
LUSO-AMERICANO (Newark, NJ) August 9, 2000
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